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Necessária separação entre confiança e omertà com advento da Lei 14.365/22

Autores:

 
 
 
 

Marcelo Rodrigues da Silva Torricelli é advogado, mestre em Compliance Penal pela Universidade Castilla-La Mancha na Espanha e em Direitos Fundamentais Difusos e Coletivos pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) (bolsa Capes/Prosuc), especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional (Idepei) e Plan A – Kanzlei für Strafrecht na Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Camp).

 
 
 
 
 
 
 
 

Filipe Maia Broeto é advogado criminalista, professor de Direito Penal em graduação e pós-graduação, mestrando em Direito Penal Econômico (Unir-Esp), especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG), Ciências Penais (Ucam), Processo Penal (Coimbra-IBCCRIM) e Compliance Corporativo (Instituto de Direito Peruano e Internacional – Idepei e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha) e autor de livros e artigos jurídicos.

 
 
 
 
 
 
 

Necessária separação entre confiança e omertà com advento da Lei 14.365/22

 
 
 

Publicada em 3 de junho de 2022, a Lei 14.365 alterou importantes diplomas normativos, tais como o Estatuto da Advocacia (Eaoab), o Código de Processo Civil (CPC) e o Código de Processo Penal (CPP), “para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal”.

 

Dentre as várias modificações legais, um ponto chama atenção, pelo potencial de discussões que trará à comunidade jurídica: trata-se do §6º-I do artigo 7º do EAOAB, que veda “ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente”. A alteração, num primeiro momento, parece não ser leviana, mas deve ser analisada com cautela redobrada, sob pena de chancelar a violação de direitos e garantias fundamentais do advogado – que assim como qualquer outra pessoa pode lançar mão da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5º, LV, CFRB).

 

A romantização da figura do advogado criminalista não escapou aos olhos de Albert W. Alschuler, que viu neste profissional um sofisticado mestre do sistema de justiça penal, cujo trabalho precípuo é ficar ao lado do réu e servir como antídoto do medo, da ignorância e da falta de instrução do acusado durante todo o processo criminal [1].

 

No âmbito dos acordos penais, J. Skelly Wright [2] vê o advogado criminal como um “equalizador” no processo de barganha, ao passo que Donald J. Newman reconhece que a presença do profissional na seara da justiça negociada viabiliza uma confissão consentida, feita com conhecimento das consequências e dos seus direitos.

 

É o advogado criminalista, enquanto defensor dos valores mais fulcrais da sociedade (a vida, a liberdade e a honra), que o inconsciente coletivo enxerga como paradigma da atividade jurídica, arquétipo da advocacia como um todo, afinal representa a defesa obstinada, incansável e ferrenha dos interesses que lhe foram confiados.

 

Os interesses do cliente são depositados no seu advogado em razão do fator confiança, dado que a confidência, como bem destaca Diogo Rudge Malan, “é um pressuposto de criação, consolidação e manutenção da relação advogado-cliente” [3].

 

Notório, portanto, que a confiança é pressuposto indispensável de existência da própria advocacia. Assim, condutas individualmente consideradas de cada advogado são importantes para que não ocorra um quadro desconfiança generalizada, e, consequentemente, resulte no desprestígio de toda a classe.

 

Não por outra razão, o artigo 10 do Código de Ética e Disciplina da OAB dispõe que as relações entre defensor e cliente são baseadas em confiança recíproca, sendo que, de acordo com o artigo 34, inciso IX, do Eaoab, a quebra da confiança pelo advogado pode caracterizar inclusive infração ético-disciplinar, se prejudicar o cliente por culpa grave em razão do seu patrocínio.

 

O sigilo profissional é uma garantia do cliente de que a confiança depositada no seu advogado não será quebrada, tanto que o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil impõe, enquanto matéria de ordem pública (artigo 36), o dever do advogado velar pelo sigilo dos fatos que tome conhecimento no exercício da profissão (artigo 35), presumindo-se confidenciais as comunicações de qualquer natureza estabelecidas com o seu cliente (§1º do artigo 36).

 

É, a propósito, sob o pretexto de reforço ao sigilo profissional e manutenção da confiança do exercício da advocacia criminal que a Lei 14.365, de 02 de junho de 2022, introduziu o §6º-I ao artigo 7º Eaoab, o qual passou a vedar expressamente que o advogado realize colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, sendo que a inobservância dessa proibição poderá resultar em processo disciplinar para aplicação da sanção disciplinar de exclusão (inciso III do caput do art. 35 da Lei 8.906/1994), sem prejuízo das penas previstas no artigo 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Crime de Violação do segredo profissional).

 

Luis Inácio Lucena Adams e Lucas Resende Fraga, em recente publicação aqui na ConJur (6/6/2022), esclareceram que essa proibição já decorria da interpretação legal sistemática, sendo que a Lei 14.365/2022, por excesso de zelo, passou, de forma acertada, a vedar expressamente a colaboração premiada em desfavor de seu constituinte atual ou pretérito [4].

 

Sem embargo, a questão não se restringe apenas e simplesmente aos deveres do advogado enquanto “profissional de defesa”, mas diz respeito aos direitos fundamentais conferidos ao advogado na condição de sujeito ativo de crime. Assim, a condição de advogado não pode anular ou sobrepor-se à de investigado ou réu, de modo a lhe suprimir as garantias que compõem o espectro da ampla defesa.

 

Da forma como posta, a proibição irrestrita da colaboração premiada representa inominável retrocesso, dado o seu potencial de vulnerar a ampla defesa do advogado (artigo 5º, inciso LV da CF/88) diante da impossibilidade de uso deste indubitável “mecanismo de defesa” para delatar os propalados “clientes” com os quais concorreu para prática de crimes em contexto de uma organização criminosa.

 

A referida vedação desconsidera, a propósito, todo o arcabouço normativo que mitiga o dever de manutenção do sigilo profissional em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa.

 

O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em seu artigo 37, é expresso no sentido de que “O sigilo profissional cederá em face de circunstâncias excepcionais que configurem justa causa, como nos casos de grave ameaça ao direito à vida e à honra ou que envolvam defesa própria. Do mesmo modo, o artigo 34, inciso VII, do EAOAB deixa claro que não haverá violação do sigilo profissional pelo advogado quando presente a justa causa. O próprio crime de violação de segredo profissional (artigo 154 do Código Penal) não considera típica a conduta de violação de segredo profissional quando houver justa causa.

 

Nota-se que nenhum dos dispositivos citados foram revogados pela Lei 14.365/2022, razão por que se mostra necessária uma leitura sistemática e constitucional do disposto no §6º-I do artigo 7º do Eaoab, de modo a permitir a colaboração premiada por parte do advogado quando houver justa causa, como é o caso de utilização do instituto em seu favor, como mecanismo de autodefesa.

 

Resulta despropositado assegurar ao “cliente”, por um lado, o direito de delatar seu advogado e impor ao causídico, por outro, o dever de ser acusado em silêncio, em completo estado de sujeição.

 

Como bem salienta Diogo Rudge Malan, “a confiança depositada pelo cliente não representa um cheque em branco” [5]. Não se pode, pois, confundir a confiança (enquanto tutela legítima de um interesse) com a omertà (voto de silêncio dentro de uma organização criminosa que impede de cooperar com os órgãos de persecução penal).

 

Quando um advogado celebra a colaboração premiada (meio de obtenção de prova específico para desmantelar o crime organizado — Lei 12.850/2013), está quebrando a omertà, e não a confiança propriamente dita do seu cliente, visto que, nesse caso, não se trata de simples relação cliente-advogado, mas sim de concurso de agentes em atividades ilícitas.

 

Ao sancionar a quebra da omertà pelo advogado-coautor, o legislador está, em realidade, a dar guarida ao crime organizado, em franca contrariedade com o escopo precípuo delação premiada, que é justamente o desmantelamento de tais grupamentos nocivos à sociedade.

 

Incumbe salientar que, antes mesmo da nova lei em comento, o advogado Aluísio Flávio Veloso Grande firmou termo de colaboração premiada com o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado na Operação “Máfia das Falências” para delatar um dos seus clientes, comprometendo-se a auxiliar o Ministério Público de Goiás na identificação do modus operandi de suposta organização criminosa que praticava um complexo esquema de fraude contra credores (artigo 168, caput, §1º, inciso IV, e §3º, da Lei 11.101/2005); indução a erro (artigo 171 da Lei 11.101/2005); e desvio, ocultação e apropriação de bens (artigo 173 da Lei 11.101/2005), sendo que realizou gravação ambiental com o referido cliente para efeito de corroboração.

 

O referido advogado terminou recebendo a sanção de suspensão por 90 dias pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB de Goiás em razão da quebra do sigilo profissional e, também, por contribuir diretamente para a prática de atos criminosos.

 

O fato é que o Superior Tribunal de Justiça, recentemente (antes do advento da Lei 14.365, de 2 de junho de 2022), consagrou o entendimento que não há ilegalidade da colaboração premiada celebrada com advogado em face do seu “cliente”. Assim, posto que tal conduta possa ser considerada reprovável do ponto de vista ético-profissional, não deve receber a “etiqueta de criminosa”, sobretudo porque o sigilo profissional do advogado não se presta para acobertar atividades criminosas como as relatadas no bojo da noticiada investigação – e na peça acusatória inaugural (STJ — RHC: 159630 GO 2022/0017956-1, relator: ministro JORGE MUSSI, Data de Publicação: DJ 28/01/2022).

 

Interessante pontuar, também, que o regime jurídico de proteção do advogado — seja a inviolabilidade de comunicações ou mesmo do escritório de advocacia — não se aplica quando ele está envolvido em atividades criminosas, hipótese em que há um câmbio de posição: de advogado, detentor de prerrogativas e deveres funcionais, para sujeito infrator; mesmo neste caso, mantém intacto o plexo de garantias que a todos assiste.

 

Nesse sentido, destaca-se que Supremo Tribunal Federal, no Inq 2424/RJ, assentou o entendimento de que “não opera a inviolabilidade do escritório de advocacia, quando o próprio advogado seja suspeito da prática de crime, sobretudo concebido e consumado no âmbito desse local de trabalho, sob pretexto de exercício da profissão”.

 

Ultrapassadas as linhas estritas da atuação profissional, tem o advogado — agora sujeito ativo de crime — direito de lançar mão de todos os instrumentos de defesa assegurados, inclusive a delação premiada. Proibir o exercício de tal direito, sob qualquer pretexto, viola não só a ampla defesa como também a própria isonomia, valores constitucionais que devem balizar a atuação estatal no âmbito da persecução penal (in concreto) e da a atividade legislativa, no aspecto de produção de leis formal e materialmente compatíveis com a Constituição Federal (in abstrato).

 

Dessa forma, conquanto se entenda que a norma analisada é incompatível com o texto constitucional, nada impede que o “advogado-delator”, por segurança, pactue no acordo de colaboração uma cláusula de isenção de responsabilidade penal atinente ao crime do artigo 154 do Código Penal.

 

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[1] ALSCHULER, Albert W. The Defense Attorney’s Role in plea bargaining. The Yale Law Journal. Volume 84, number 6, may 1975. Disponível em: <https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1981&context=journal_articles>. Acesso em 07 de junho de 2022. [2] Wright, The New Role of Defense Counsel Under Escobedo and Miranda, 52 A.B.A.J. 1117, 1120 (1966). See Halworth, The Myth of the Jury Trial, COMMONWEAL, Apr. 25, 1969, at 161-64; Note, The Unconstitutionality of. Plea Bargaining, 83 HARV. L. REv. 1387, 1391 (1970); Kerson, Book Review, 42 IND. L.J. 449, 450 (1967). [3] MALAN, Diogo Rudge. Advocacia Criminal Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2022. p. 129. [4] ADAMS, Luis Inácio Lucena; FRAGA, Lucas Resende. As prerrogativas da advocacia e as alterações da Lei 14.365/2022. 06 de junho de 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jun-06/publico-privado-prerrogativas-advocacia-alteracoes-lei-14365> . Acesso em: 07 de junho de 2022. [5] MALAN, Diogo Rudge. Advocacia Criminal Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2022. p. 129.

 

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Fonte: Conjur

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