Dialogar, presentemente, está difícil, sobretudo em razão dos vários intelectuais, formados, muitas vezes, nas «faculdades das redes sociais».
Todo mundo falando de tudo, com propriedade de nada; parecem até saber, mas, no fundo, o que mais sabem é parecer e aparecer.
Falar de Direito num cenário de instabilidade, para além de banalidade, é quase um ato de infantilidade: os parâmetros jurídicos não são mais a Constituição Federal – CF, as leis ou os livros. Se não se liga muito para aquela, a Constituição, que se dirá para estes últimos.
No Brasil, Direito e Política estão mesclados de tal modo que não é possível saber quando o Direito materializa uma política ou quando esta conduz aquele.
Afora toda essa aberração, pior ainda são «intelectuais de ocasião», cujas vozes só se levantam em defesa do Direito quando o Direito defende os direitos que lhes convém. Intelectual de ocasião nem intelectual é, é fanfarrão…
Se a Lei é geral e abstrata, se deve ser válida para todos, independente de quem seja «o processado da vez», por que razão ora se decide de um jeito, ora de outro?
Difícil falar de Direito, atualmente, haja vista o referencial ter-se perdido rapidamente.
A Constituição – aquela, tão esquecida, que parecem não ouvir, não ligar e não defender – diz que «são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário».
O dicionário explica que ser independente é agir «com autonomia, manter-se livre de qualquer influência»; ao verbete harmonia, por sua vez, dá o significado de «ausência de conflitos; paz, concórdia; conformidade entre coisas ou pessoas; concordância, acordo».
Com os olhos voltados para o dicionário, parece ficar claro que a Constituição, nesse ponto, não passou de uma «Carta de intenções»…
Cadê a independência?
Onde está a mencionada harmonia?
Se, ao olhar para o dicionário, se compreende o que é independência e harmonia, ao voltar-se os olhos para a realidade política e jurídica, bem se nota que o que existe na atualidade é o oposto: «dependência» e «desarmonia».
O Dicionário elucida, e a realidade confirma: não se vive, mais, num Estado Democrático de Direito, em que a Lei é respeitada, e Constituição aponta o rumo a se seguir.
No Congresso (Poder Legislativo), que representa em tese a vontade do povo, vota-se, por exemplo, um projeto de lei que altera substancialmente – e de forma positiva, ressalta-se – o Código de Processo Penal… o projeto vai para o Presidente da República, que o sanciona…
Agora é Lei, falaram alguns… Iludidos! De que adianta a Lei, se mesmo a Constituição aqui não tem força normativa?
Na doce ilusão!
Chegou-se a pensar, e a comemorar, e a dizer: agora haverá o necessário juiz das garantias, por meio do qual se conseguirá implementar, de fato e de direito, um sistema processual acusatório; agora, em casos de o juiz ter contato com a prova ilícita, para além de desentranhar a prova dos autos, substituir-se-á também o julgador, para evitar os odiosos prejuízos cognitivos, os quais são um atentado à imparcialidade, que é, afinal, o fundamento da própria jurisdição (Zaffaroni).
Ledo engano…
No Supremo, o Ministro Luiz Fux, de forma liminar, suspendeu a eficácia de vários dispositivos, talvez os que implementariam as mudanças mais significativas. Tudo segue suspenso, já faz mais de dois anos. Essa lei, na realidade, «não existe».
Tudo segue igual, ou (bem) pior do que já era.
Lei? Para que serve? De que adianta? No Brasil, não se está resguardando nem mesmo a Constituição.
Lembram-se de Lula, quando preso? A execução de sua pena, de forma antecipada, apenas em razão do julgamento colegiado pelo TRF-4, era completamente inconstitucional! À época, sem qualquer defesa à pessoa de Lula, criticamos o posicionamento do STF (leia aqui e aqui e em vários outros lugares na internet), porque, de fato, inconstitucional.
Não se trata(va) de «esquerda ou direita», trata(va)-se, sim, de Direito! A constituição é clara, pelo menos desde 1988, ao dizer que «ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória».
O que importa, aqui, como dito, é o direito (que é direito de todos) do cidadão processado, e não propriamente o cidadão processado (pouco importa se é Lula, Bolsonaro, chico ou Francisco, rico ou pobre).
No caso do «indulto» conferido pelo Presidente da República a Daniel Silveira, cabe uma simples observação: a medida é constitucional e, portanto, legítima. Negar legitimidade ao indulto – que, na verdade, é graça – é o mesmo que dizer que o exercício de um direito constitucionalmente previsto é inconstitucional ou, ainda, que o fogo é gelado e água, seca… Ou seja, é uma gigante contradição.
A propósito, quanto à constitucionalidade e limites do indulto, é interessante destacar que o mesmo Supremo, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.874/DF, deixou bem claro que «O sistema de freios e contrapesos […] também estabelece mecanismos de controle do Executivo sobre o Poder Judiciário […] como na presente hipótese, a possibilidade de concessão de graça, indulto ou comutação de penas (CF, art. 84, XII)».
Na mesma decisão, o próprio Ministro Alexandre de Moraes consignou, em seu voto, que «compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade; devendo ser, por inoportuna, afastada qualquer alegação de desrespeito à Separação de Poderes ou ilícita ingerência do Executivo na política criminal, genericamente, estabelecida pelo Legislativo e aplicada, concretamente, pelo Judiciário». (Grifo nosso).
Se o indulto (ou graça, para que não venha um intelectual de ocasião dizer que o termo foi empregado de forma equivocada) do Presidente possui, como visto, assento constitucional e já foi inclusive amplamente debatido pelo STF, no bojo da sobredita ADI, o mesmo não se pode dizer do processo que culminou na condenação do Parlamentar Federal Daniel Silveira.
Daniel foi investigado, processado e julgado pela própria «vítima», que é o Supremo Tribunal Federa, órgão maior do Poder Judiciário.
Sem maiores considerações acerca de sistemas processuais inquisitivos, acusatórios, «mistos» e seus núcleos informadores, uso apenas uma lição basilar de processo para lembrar que juiz deve ser imparcial, e que imparcial, por obvio, é aquele que não toma parte.
Se o STF era, a um só tempo, «vítima e juiz», ele não apenas tomou parte como foi a própria parte, razão pela qual não de modo imparcial.
Reside, pois, aqui uma – dentre várias – das aberrações que temos visto diariamente.
Que país é esse? «Nas favelas, no Senado; Sujeira pra todo lado; Ninguém respeita a Constituição; Mas todos acreditam no futuro da nação; Que país é esse?».
Para terminar com rima, o que com rima começou, digo apenas que «me desminta» – juridicamente – quem com o texto não concordou.
«Comece» por justificar o «começo» de tudo: o processo em que a vítima é também o julgador. Se não for por aí, nem insista em escrever para me convencer, pois, certamente, não vou ler…
Filipe Maia Broeto
Advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Mestrando em Direito Penal Econômico, especialista em direito penal econômico, ciências penais, processo penal e direito público é autor de livros e artigos jurídicos.