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A necessidade da individualização das condutas nas ações de improbidade administrativa

Valber Melo[1]

 

Filipe Maia Broeto[2]

 

Fernando Faria[3]

 

 

 

 

 

O tema “improbidade administrativa”, conquanto não seja inédito no direito brasileiro, inegavelmente tem ocupado papel de destaque no recente cenário jurídico nacional, notadamente em decorrência dos novos meios de comunicação, que permitem uma maior fiscalização e cobrança, por parte da sociedade (administrados), dos agentes públicos (administradores).

 

 

 

No atual estágio civilizatório da sociedade brasileira, tem-se notado uma maior preocupação com o comportamento daqueles que se dispõem a, em nome do povo e por outorga deste, gerir a res publica, bem como daqueles que, mesmo sem serem eleitos, passam a integrar a Administração Pública lato sensu.

 

 

 

À medida em que os instrumentos comunicativos avançam e se tornam mais acessíveis, elevam-se as possibilidades de fiscalização contínua da atividade pública, bem como das atividades da iniciativa privada, quando conjugadas àquela primeira. A cobrança é salutar, e os mecanismos de combate à corrupção têm por escopo viabilizar instrumentos capazes de efetivar o chamado “direito à boa administração”.

 

 

 

Nesse contexto, é evidente que as cobranças sobre os órgãos e entidades repressores são potencializadas, gerando, por consectário, uma ampliação no número de ações judiciais por atos de improbidade administrativa.

 

 

 

O que não se pode aceitar, no entanto, são imputações genéricas[4], mal redigidas ou, noutros termos, não individualizadoras das condutas ímprobas atribuídas a este ou aquele agente público (ou particular, que eventualmente tenha se beneficiado, dolorosamente, dos atos ímprobos daqueles).[5]

 

 

 

Não se desconhece, é bem verdade, como anotam Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende de Oliveira, que “a doutrina, de forma amplamente majoritária, entende que a ação de improbidade administrativa tem natureza civil”.[6] Nada obstante, são cada vez mais crescente as vozes que sustentam a similitude ontológica dessa área do direito administrativo sancionador com o direito penal e processual penal. [7][8]

 

 

 

Não foi por outra razão, aliás, que Gilmar Ferreira Mendes e Arnold Wald, já nos primórdios da Lei nº 8.429/92, atribuíam à improbidade administrativa, em face de suas drásticas sanções, um caráter “quase-penal”.[9] Em decorrência dessas peculiaridades, concordamos com Fábio Medida Osório quando, em sua obra “Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão, corrupção e ineficiência”, afirma que “tratando-se de direito punitivo, principalmente de direito administrativo sancionador, é possível invocar, de modo análogo, o direito penal e o processo penal”.[10]

 

 

 

Tal como anota o autor:

 
 
 
O direito penal tem sido a melhor referência histórica para o balizamento e limitação do poder punitivo estatal, inclusive quando é este último exercido por autoridades administrativas ou por autoridades judiciárias na prática de poderes jurisdicionais de imposição de sanções administrativas. Não se trata de reduzir as fontes do direito administrativo sancionador ao direito penal, como se este ostentasse alguma espécie de superioridade normativa. Trata-se apenas de perceber a superioridade teórica da dogmática penal, que pode e deve servir inspiração garantista na seara do direito administrativo punitivo, eis que ambas constituem projeções do direito punitivo público, carecendo de limites e contornos básicos comuns. Nesse contexto é que as sanções aos atos de improbidade administrativa são irretroativas, tanto quanto os tipos sancionadores, na medida em que o conceito de sanção atrai essa proximidade dogmática entre as esferas penal e não penal de cunho punitivo.[11]
 

 

 

Nessa ordem de pensar, defendemos que, às ações de improbidade administrativa, deve ser dispensado o mesmo tratamento fornecido aos processos penais, o que reflete, inexoravelmente, no rigor técnico exigido na elaboração redacional das peças de imputação (petições iniciais).

 

 

 

As balizas que devem nortear os limites da imputação hão de corresponder, à exatidão, àquelas dispostas no artigo 41, do Código de Processo Penal, segundo o qual “[a] denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

 
 
 

Disso se extrai que, mesmo não se tratando de um primor de elaboração técnica, a denúncia e, por analogia, a inicial que imputa atos de improbidade administrativa devem observar determinados requisitos elementares, capazes de fornecer o substrato mínimo a uma persecução criminal/ação de improbidade administrativa aceitáveis.

 
 
 

A individualização das condutas, no âmbito da improbidade, ganha maior relevo ainda se for levado em consideração o fato de que os tipos sancionadores não observam, como ocorre na seara criminal, o princípio da taxatividade, tornando deveras dificultosa a compressão do alcance proibitivo dos ilícitos administrativos, sobretudo porque trabalha com “tipos abertos” e róis não taxativos.

 
 
 

Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende de Oliveira corroboram essa conclusão:

 
 
 
A tipificação dos atos de improbidade administrativa é, em regra, aberta e o rol de condutas elencadas para a configuração é exemplificativo. Isto porque os arts. 9.º. 10 e 11 da Lei 8.429/1992, ao elencarem determinadas condutas que são tipificadas como atos de improbidade, utilizam-se da expressão notadamente, o que demonstra que outras condutas também podem ser enquadradas nos referidos tipos de improbidade.[12]
 

 

 

Na mesma direção é o escólio de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem “embora a lei, nos três dispositivos, tenha elencado um rol de atos de improbidade, não se trata de enumeração taxativa, mas meramente exemplificativa”.[13]­ Dirley da Cunha Júnior, de igual forma, também deixa claro que estes “atos são enumerados nos artigo 9º, 10, 10-A e 11 da Lei 8.429/92 de forma meramente exemplificativa”.[14]

 

 

 

Diante desse delicado cenário, o mínimo que se pode assegurar ao demandado é a garantia de, validamente, exercitar o sagrado direito do contraditório (formal e substancial) e da ampla defesa, o que somente pode ser materializado após uma conjugação exata do caso concreto, devidamente individualizado e amoldado à norma administrativa que se alega ter sido violada.

 

 

 

Além do mais, tendo em vista a ampla variação ao longo da própria história das normas que tutelam a probidade dos homens públicos, tanto no campo do direito positivo, quanto no plano da consciência social, resta inequívoco o demasiado espaço que pode ser hermeneuticamente empregado de forma arbitrária, de modo tal a impedir até mesmo a defesa do imputado, ante a imprecisão da descrição típica do suposto fato típico perpetrado e o bem jurídico vulnerado.

 
 
 

Nesse panorama, caem como luvas as palavras de Fábio Medina Osório, para quem desconhecer “essa realidade equivale a interpretar isoladamente a LGIA, tornando-a um instrumento de arbítrio e injustiças, incidente diretamente sobre os casos concretos, com margens intoleráveis ao subjetivismo intolerável dos operadores jurídicos”.[15]

 

 

 

Torna-se, portanto, imperiosa a constatação de que não pode alguém ser demandado numa ação de improbidade administrativa com base numa narrativa demasiadamente normativa e pouco fática. É dizer, a mera reprodução dos dispositivos da Lei 8.429/1992 não preenche os requisitos necessários ao rigoroso e indispensável juízo de admissibilidade da inicial, que exige a pormenorizada individualização das condutas imputadas ao demandado.

 
 
 

Tais exigências são aplicáveis, aqui, não somente por força de um “empréstimo dogmático” do direito penal, mas por ser imperativo constitucional à viabilização do correto exercício do contraditório e da ampla defesa, o que somente pode ser atingido quando houver uma imputação pormenorizada dos fatos, a qual permita ao demandado conhecer as exatas razões da acusação e exercer plenamente o direito de defesa, de acordo com as garantias constitucionais previstas no núcleo duro intangível da Lei Fundamental, mais precisamente no artigo 5º, incisos LIV e LV[16].

 
 
 

Ao encontro desse entendimento são as lições de Waldo Fazzio Júnior, no sentido de que existe verdadeira obrigatoriedade para que a:

 
 
 
[…] peça vestibular seja precisa quanto à indicação do fato e os fundamentos jurídicos do pedido. É ônus do autor da ação civil de improbidade administrativa inscrever, na peça vestibular, o que quer, por que quer, com fundamento em que quer. Leia-se, em que consistiu o ato de improbidade imputado ao réu, ou, conforme o caso, o ato cuja decretação de invalidade postula, ou, ainda, em que consistiu sua lesividade ao patrimônio da entidade pública, se for o caso. Também, incumbe-lhe apontar, de forma concreta e objetiva, como e em que condições teria o requerido praticado os atos de improbidade que lhe são imputados. É lógico. Sem que os fatos, antes da citação, sejam devidamente delineados, com os respectivos fundamentos do pedido, o réu não poderá deduzir, com base neles, sua defesa preliminar.[17]
 

 

 

Destaque-se, à guisa de conclusão, que não é só a doutrina, atualmente, que tem defendido tal necessidade. Tem-se percebido que os tribunais pátrios, de modo positivo, atentos às balizas doutrinárias no tocante à matéria em questão, não têm se furtado de reconhecer as flagrantes ilegalidades em iniciais ineptas, por ausência de precisão imputativa, a saber:

 
 
 
[…] inépcia foi corretamente pronunciada em primeiro grau. […] não se cuidou de proceder na inicial a individualização das condutas dos corréus de molde a permitir a análise da extensão de suas respectivas responsabilidades; limitou-se o promovente a atribuir a todos, de forma genérica, a prática de atos ilícitos, “atuando em conluio”, sem indicar concretamente quais as circunstâncias que evidenciariam a existência deste procedimento ardiloso e a forma de que se teriam valido para beneficiar terceiros.
 
Bem de ver que não basta a mera descrição das ilegalidades verificadas no ato para o reconhecimento da improbidade administrativa, sendo inarredável o detalhamento da conduta de cada um dos agentes públicos ou particulares envolvidos que a caracterizariam.[18] (grifou-se)
 

 

 

Dessa forma, resta concluir que, conquanto a Lei 8.492/1992 tenha, desacertadamente, dado demasiada elasticidade aos atos ímprobos, permitindo, via um “contorcionismo hermenêutico”, o enquadramento de um amplo leque de condutas como infrações administrativas – ainda que não sejam devidamente descritos na inicial os elementos fático-normativos que dotam de ilegalidade determinada conduta humana –, doutrina e jurisprudência têm firmado o posicionamento segundo o qual, apesar de se tratar de ação de natureza cível, dados os contornos penais que revestem as sanções previstas na retrocitada legislação, a descrição pormenorizada dos fatos se revela direito inafastável do demandado, o qual, uma vez inobservado, deve acarretar a rejeição da vestibular, nos moldes do artigo 17, §8º, do diploma legal em estudo.

 

[1] Advogado criminalista. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Especialista em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal Econômico. Professor de Direito Penal e Processual Penal. Autor de livros e artigos jurídicos. [2] Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal Universidade de Buenos Aires. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes, Processo Penal pela Universidade de COIMBRA/IBCCRIM), Direito Público pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito. É autor de obras e artigos jurídicos. [3] Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação do Ministério Público (FMP/RS). Mestrando em Direito Penal Universidade de Buenos Aires. [4] Prejuízo ampliado em face dos tipos abertos dispostos na Lei 8.429/92. [5] Defendemos que o particular somente pode responder por improbidade administrativa caso haja dolosamente. É dizer, para enquadrar-se o particular no disposto artigo 3º, da LIA, é dever do Ministério Público comprovar, minimamente, uma atuação, voluntária e cognoscitivamente, orientada à (i) indução, (ii) concorrência ou (iii) benefício espúrio em desfavor da administração pública –– não bastando, por óbvio, a reprovável manipulação de depoimentos. [6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Manual de improbidade administrativa: direito material e processual. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 131. [7] MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada: com súmulas e julgados selecionados do STF e de outros tribunais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 288. [8] NUNES, Filipe Maia Broeto. A necessidade da individualização das condutas nas ações de improbidade administrativa como garantia constitucional do demandado: uma análise interdisciplinar entre direito penal, processual penal e direito administrativo sancionador. Revista dos Tribunais. vol. 1012. ano 109. p. 21-37. São Paulo: Ed. RT, fevereiro 2020. [9] MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, abr./jun. 1998, p. 215. [10] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão: corrupção: ineficiência. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 203. [11] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão: corrupção: ineficiência. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 203. [12] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Manual de improbidade administrativa: direito material e processual. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 131. [13] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 820. [14] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito administrativo. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 631. [15] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão: corrupção: ineficiência. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 229. [16] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. [17] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 2008. p. 315. [18] TJSP, 8ª Câm. Dir. Pub., apel. n. 0009325-40.2008.8.26.0318, rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 6.6.12,

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